Dr. Thiago C. Valladão de Azeredo
Clínica Médica
Neurologia Clínica
CRM ES 9669

Demências
Entrevista do Dr. Ricardo Nitrini, que trabalha Hospital das Clínicas (USP) e é professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo ao Dr. Drauzio Varella.
FONTE: www.drauziovarella.com.br
Demência é um termo que choca a grande maioria dos leigos que o associa à ideia de loucura. Em medicina, porém, a palavra demência tem significado diferente. Ela é empregada para definir quadros que se caracterizam por deficiência cognitiva persistente e progressiva. Essa falta interfere nas atividades rotineiras do indivíduo, embora ele custe a perder a consciência do mundo que o cerca.
Algumas doenças podem apresentar manifestações comportamentais características da demência. Nesse caso, o diagnóstico diferencial é de extrema importância, porque elas são passíveis de tratamento e o indivíduo retoma a vida normal.
Demência ainda não tem cura, mas tem tratamento que pode retardar a evolução do processo.
CONCEITO DE DEMÊNCIA
Drauzio – Qual o conceito de demência em medicina?
Ricardo Nitrini – Demência é uma síndrome resultante do declínio progressivo da capacidade intelectual do indivíduo. Caracteriza-se pela perda da capacidade de memorizar, de resolver os problemas do dia a dia, o que interfere em seus relacionamentos e atividades sociais e profissionais.
Drauzio – De modo geral, as demências não se instalam abruptamente. A instalação pode ser insidiosa e os familiares, às vezes, demoram para perceber o que está acontecendo. Alguns déficits cognitivos que o doente apresenta são interpretados como distração ou sintomas próprios da idade mais avançada. O que deve chamar a atenção da família, quando uma pessoa está entrando num processo demencial?
Ricardo Nitrini – É relativamente comum o indivíduo, especialmente quando se aposenta ou abandona parte de suas atividades, mostrar-se desinteressado por tudo aquilo que fazia antes. A família encontra explicações para a mudança de atitude no afastamento do trabalho. No entanto, é preciso observar se estão ocorrendo distúrbios na capacidade de formar novas memórias, ou seja, de memorizar fatos novos, uma vez que o sintoma inicial mais comum da Doença de Alzheimer é a dificuldade de memorização: o paciente não retém recados, repete várias vezes a mesma pergunta e não consegue fixar informações.
O caso merece atenção especial e o paciente deve ser levado ao médico quando perde o interesse por tudo, mesmo que a memória não esteja falhando, porque as síndromes depressivas podem confundir-se com as síndromes demenciais. Jovem deprimido perde o interesse sexual, por atividades lúdicas, pelo esporte. O idoso deprimido manifesta fundamentalmente um distúrbio de atenção, de concentração e de memória. Como esses também são sintomas das demências, é bom procurar atendimento para que sejam interpretados adequadamente, pois, como já foi dito, depressão tem tratamento e a pessoa pode voltar à atividade plena.
CAUSAS REVERSÍVEIS DE DEMÊNCIA
Drauzio – Você abordou a semelhança de sintomas nas síndromes depressivas e nas demenciais. Outros problemas clínicos podem provocar quadros difíceis de distinguir das demências?
Ricardo Nitrini – Existem quadros de demências reversíveis com sintomas semelhantes aos da síndrome demencial que, com tratamento específico, regridem e o paciente volta ao normal. Diversos estudos demonstraram que, num universo de cem pacientes, 10% seriam portadores de demências potencialmente reversíveis, provocadas por fatores como mau funcionamento da tireoide (quer hipertireoidismo, quer hipotireoidismo), traumas de crânio, coágulos de sangue, hematomas ou por carências nutricionais. No idoso, por exemplo, carência da vitamina B12, fato que ocorre com alguma frequência, não só pode ser responsável pela síndrome demencial como pode agravá-la. Se por acaso houver declínio real da cognição e concomitantemente anemia, o desempenho do paciente piorará muito.
Por isso, é muito importante considerar todas as demências como potencialmente reversíveis. O médico tem a obrigação de descartar as causas reversíveis da doença. No passado, a mais comum era a sífilis. No Juqueri, sanatório psiquiátrico de São Paulo, era enorme o número de pacientes internados com quadros de demência provocada pela sífilis. Hoje, esses casos são mais raros, especialmente se o diagnóstico for feito precocemente.
Drauzio – Como os distúrbios da tireoide – tanto o hipotireoidismo quanto o hipertireoidismo – interferem com o funcionamento do cérebro?
Ricardo Nitrini – Seguramente os neurônios, ou seja, as células nervosas, têm receptores para os hormônios circulantes e isso acaba produzindo impacto importante no funcionamento do sistema nervoso central. Entre as manifestações do hipertireodismo, por exemplo, estão as mudanças de humor e as crises de irritabilidade, sintomas que podem ocorrer também nos casos de demência.
USO DE MEDICAMENTOS
Drauzio – Você falou que todo quadro de demência deve ser tratado como reversível até que se prove o contrário. Pessoas de idade, muitas vezes, tomam diversos medicamentos. É remédio para pressão, para diabetes, para o colesterol, etc. Existe alguma relação entre uso de medicação e aparecimento de demências?
Ricardo Nitrini – O uso de alguns medicamentos pode ser causa importante do comprometimento das funções intelectuais. Por exemplo, largamente utilizados pela população idosa, os remédios contra a vertigem exercem forte impacto sobre a memória. A pessoa sente tontura, o médico prescreve um medicamento que ela continua tomando por tempo indeterminado. Da mesma forma, remédios que agem sobre a necessidade premente para urinar podem ter efeito negativo sobre a cognição, sobre a capacidade intelectual.
Outro lado do problema está na quantidade de medicamentos que os idosos acabam tomando. Não é raro passarem por vários especialistas, cada um prescrever um tipo específico de medicação e procurar não mexer na prescrição do colega. Como consequência, os idosos acabam tomando diversos remédios que interagem e podem provocar distúrbios de vários tipos, entre eles o déficit cognitivo.
Drauzio – Você falou das doenças clínicas que podem estar associadas à demência e que tratadas fazem reverter o quadro e dos medicamentos, que também podem provocar síndromes demências. No entanto, há quadros que se instalam sem que façamos ideia do porquê. É o caso da doença de Alzheimer, responsável pela imagem clássica da pessoa que começa perdendo a memória e, depois, a capacidade de relacionar-se com o meio. Mas, essa não é a única doença que afeta a capacidade cognitiva. Você poderia falar sobre elas?
Ricardo Nitrini – A doença de Alzheimer é a mais comum de todas. Talvez 60% ou 70% dos casos de demência sejam decorrentes dessa enfermidade, mas existem algumas outras, tão graves quanto o Alzheimer e com sintomas parecidos.
DIAGNÓSTICO E ORIENTAÇÕES
Drauzio – Por tudo que você disse, estabelecer um diagnóstico diferencial das demências é muito importante.
Ricardo Nitrini – Hoje, a grande preocupação é buscar métodos para fazer o diagnóstico o mais depressa possível. Mesmo para a doença de Alzheimer, cujos recursos para tratamento ainda são pobres, o diagnóstico precoce permite adotar uma série de medidas que retardam a dependência total do indivíduo e mantém sua qualidade de vida por mais tempo.
Drauzio – Como quem apresenta demência acaba se tornando dependente dos familiares, qual a orientação que você dá para as pessoas que têm um caso desses na família?
Ricardo Nitrini – Tudo depende da fase em que o paciente se encontra. Nas fases iniciais em que o distúrbio principal é a memorização, a orientação de um profissional de saúde pode ajudar bastante. Por exemplo, se o paciente anotar na agenda todos os compromissos e atividades do dia a dia, seu desempenho vai melhorar muito. Além dos remédios que deve tomar, ele precisa aprender a conviver com a dificuldade e a contorná-la.
Nas fases mais avançadas, quando se torna dependente, quem precisa de orientação é a família. Ela precisa saber como deve tratar esse indivíduo e como enfrentar uma situação, muitas vezes, dramática. À medida que a doença evolui, a orientação é fundamentalmente de enfermagem visando ao tratamento de um paciente crônico-dependente. São cuidados gerais em relação à pele, ao funcionamento do intestino e da micção, entre outros. Atualmente se considera que o acompanhamento desses pacientes exige o apoio multidisciplinar de enfermeiras, psicólogos, terapeutas ocupacionais que se encarregam de orientar a família com informações que podem melhorar a qualidade de vida dos pacientes.
Drauzio – Vejo esse problema com a maior preocupação. Há famílias que não têm condição de cuidar do parente que envelheceu. São poucos e precisam trabalhar. Você acha que existe infraestrutura clínica para cuidar desses doentes que não podem contar com apoio familiar?
Ricardo Nitrini – Lamentavelmente não existe infraestrutura para isso. O tratamento dessas pessoas fica por conta da própria família. Nem na rede pública, nem na de convênios, é dado atendimento aos portadores de doenças degenerativas o que, na minha opinião, é um grande erro.
Hoje, as famílias estão cada vez menores e não contam com número suficiente de pessoas que poderiam revezar-se nos cuidados ao doente. Na grande maioria, são apenas um ou dois filhos responsáveis pelo tratamento e custa caríssimo manter o idoso numa instituição que se encarregue de alimentá-lo, dar-lhe banho e oferecer-lhe os demais cuidados necessários. Portanto, é preciso que a rede pública e os serviços de saúde estejam informados. Esses pacientes vão exigir cada vez mais atenção e assistência a menos que se descubra, nos próximos anos, alguma coisa que possa, se não impedir a ocorrência, pelo menos retardar o aparecimento dessas doenças.
A tendência atual é que ela se manifeste por volta dos 75/85 anos. Se conseguirmos adiar seu aparecimento por dez anos, teremos um número muito menor de portadores de síndromes demenciais. Enquanto isso não acontece, as entidades médicas, públicas e sociais, têm de preocupar-se porque a prevalência dessas enfermidades vai aumentar. Ao contrário do que acontecia antigamente, as pessoas estão vivendo mais e tendo à disposição recursos que as ajudam a vencer doenças que antes eram fatais.
PREVENÇÃO DAS DEMÊNCIAS
Drauzio – O pior dessas demências é a sensação de inexorabilidade que as cerca. Posso me defender de um infarto do miocárdio praticando exercícios, não fumando, controlando o nível das gorduras e do açúcar, etc. Em relação às demências , há algo que pode ser feito para impedir ou retardar seu aparecimento?
Ricardo Nitrini – Alguns estudos recentes têm demonstrado que os cuidados para prevenir o infarto do miocárdio são os mesmos indicados na prevenção de doenças como a de Alzheimer. Sabe-se que indivíduos com níveis baixos de colesterol durante a idade adulta têm menor risco de desenvolver Alzheimer e que a hipertensão é fator que favorece o aparecimento da doença demencial.
Outros estudos mostram que provavelmente a associação de vitamina E com a vitamina C pode retardar o aparecimento da doença de Alzheimer. A esperança é que, no futuro, existam mais recursos à disposição para serem adotados a partir dos 30 anos, uma vez que essas doenças se manifestam tardiamente, mas começam a instalar-se cedo.
ATIVIDADE INTELECTUAL E DEMÊNCIA
Drauzio – Existe relação entre atividade intelectual e demência?
Ricardo Nitrini – Estudos mostram que indivíduos que mantêm a atividade intelectual depois que se aposentam apresentam menor risco de desenvolver essas doenças.
Existe certa dificuldade técnica para fazer essa análise. Quando se diz que uma pessoa a partir dos 65 anos começou a desinteressar-se de tudo, não lia mais nem os jornais e que aos 72 manifestou um quadro de demência, a pergunta é se aos 65 já não teria um comprometimento demencial leve que provocou o desinteresse.
Não temos como saber o que veio primeiro, mas não há dúvida de que a atividade intelectual diminui o risco de demência. O indivíduo bem preparado intelectualmente conta com mais maneiras de resolver um problema. Por exemplo, se não lembra uma palavra durante a conversa, pode valer-se de outra, porque seu repertório é amplo. Já aquele que aprendeu pouco, se esquece uma palavra, não conhece outra para substituí-la e deixa de comunicar-se.
Portanto, pessoas com escolaridade maior, que leram mais ao longo da vida e não só quando ficaram idosos, são de menor risco. Mesmo quando a doença já está instalada, pode demorar anos para ficar evidente nos mais preparados.
No Brasil, o preocupante é o número de analfabetos e analfabetos funcionais, especialmente entre os idosos, que não tiveram a menor chance de aprendizagem sistematizada. Quando se deparam com um problema, como só conhecem uma estratégia de solução, não conseguem contorná-lo. Esses indivíduos correm risco mais sério de demência.